Fenómenos interessantes

 Com a terceira fase da invasão russa da Ucrânia (precedida pela invasão e anexação da Crimeia, primeira fase, e o conflito de "baixa intensidade" no Donbass, a segunda, ambas iniciadas em 2014) em curso, temos assistido a alguns fenómenos interessantes.

Os Factores do conflito

A invasão tem vários factores que levaram à situação actual, sendo a principal a imagem interna do regime putinista na repressão, há cada vez menos medo e a propaganda tem perdido eficácia. Outros factores, muitíssimo menores, são a demonstração de força externa para além dos desfiles militares do dia da Vitória e da Revolução de Outubro, sanções externas, a crença do cerco da NATO (a adesão ucraniana é impossível dado a situação dos territórios disputados desde 2014, tal como o Chipre desde a invasão turca de 1974) e da redução da esfera de influência regional russa com uma possível adesão ucraniana à UE (provável, mas seria um processo lento, tem sido recusado o processo de adesão desde 2004 por parte da própria UE), para além da presença de neonazis na política ucraniana e em forças paramilitares integradas na Guarda Nacional.

Entretanto há quem argumente, a meu ver erradamente, que a motivação para a invasão foi a expansão da NATO e UE para leste, que violou um acordo informal de Yeltsin com o ocidente nos anos 90 de não expansão da NATO e a violação dos acordos de Minsk por parte da Ucrânia (o fracasso de ambos os acordos deveu-se a ambas as partes). Considero que não foi um factor fundamental, até porque Kaliningrado está cercado por membros da NATO há anos, a Suécia e Finlândia são neutros apesar de serem membros da UE. 

É, infelizmente, o caso do PCP nesta argumentação, mas não merece a perseguição e o ódio pelo posicionamento, merece crítica, claro. No entanto, passa ao lado de demasiada gente a extrema-direita portuguesa e europeia literalmente financiada pelo regime putinista, até comentadores televisivos.

A chamada "desnazificação" por parte da Rússia é facilmente desmontada com testemunhos dos neonazis russos envolvidos na invasão russa do Donbass e da manipulação das associações civico-culturais russas nessa região (as chamadas associações Respublikas de Donetsk e Lugansk), com os símbolos dessas associações a servirem como símbolos dos proto-estados de Donetsk e Lugansk. Apesar disto, é factual o envolvimento neonazi do lado ucraniano, principalmente com o Batalhão Azov e os seus braços políticos Pravyi Sektor e Svoboda, chegando a recrutar neonazis do Brasil à Rússia, destacando-se o caso italiano de 2019 em que neonazis italianos treinaram no Donbass e trouxeram um míssil Matra pertencente ao Qatar. Torna-se ainda mais preocupante o branqueamento destes neonazis, muito similar aos mujahideen afegãos durante a intervenção soviética, que deu nos vários movimentos jihadistas actuais.

As sanções, abandono económico da Rússia e russofobia

O Ocidente, evitando ao máximo um envolvimento directo no confronto militar russo, pois isso implicaria inevitavelmente uma III Guerra Mundial e um apocalipse nuclear, como Zelensky pede irresponsavelmente por uma zona de exclusão aérea, recorre ao seu músculo económico. 

Primeiro começaram pela oligarquia russa (afinal sempre se sabe onde metem o guito, mas em graus diferentes, que o diga Londongrad), depois os legisladores que elaboraram a resolução para reconhecimento das "Repúblicas Populares" do Donbass e as altas patentes.

Com isto veio o encerramento mútuo dos espaços aéreos, a censura o cancelamento do NordStream 2, a suspensão das operações ou até mesmo saídas das multinacionais da Rússia e da Bielorrússia, culminando no desemprego de dezenas de milhares de pessoas, a expulsão do Swift, a queda do rublo, a suspensão da importação de hidrocarbonetos e cereais produzidos na Rússia.

Ao mesmo tempo, perseguem-se russos por serem russos (e bielorrussos também), atacando desde atletas paralímpicos, Dostoiévski e Gagarin a artistas russos, exclusão dos cientistas russos de programas internacionais e de intercâmbio, incluindo até quem se oponha à invasão e abrindo os braços incondicionalmente a ucranianos, ataques a igrejas ortodoxas russas e exclusão de atletas e clubes de participação em eventos desportivos internacionais... E nisto é notável a hipocrisia ocidental: isto não aconteceu com os EUA e o Reino Unido após a invasão do Iraque, com Israel com o que faz na Palestina há décadas, com Marrocos no Sahara Ocidental, com a Turquia com o que faz na Síria e Chipre e aos curdos, com os sauditas e Emirados com o que fazem no Iémen, com a Etiópia com o que faz aos tigrés, com a Birmânia com o que faz aos Rohingya, com a Indonésia com que faz aos papuanos, com a Espanha com o que faz aos catalães, bascos e galegos, com o Brasil com o que faz aos indígenas, com o Azerbaijão com o que faz aos arménios.

A situação do PCP

O caso do PCP e o seu posicionamento nisto é criticável, mas não merece a perseguição e o ódio pelo posicionamento. Considerar o partido como "putinista" é ridículo quando temos a extrema-direita portuguesa e europeia literalmente financiada pelo regime putinista, até comentadores.

Na lógica dita anti-imperialista faz sentido o foco contra o expansionismo do imperialismo dos EUA, mas é um erro considerar que a Rússia não é imperialista e que é um país anti-imperialista, quando só o é face ao imperialismo dos States. A Rússia é, como todos os imperialistas, contra-imperialista, isto é, contra impérios (formais e informais) rivais que queiram entrar na sua zona de influência.

A isto acrescenta-se o apelo explícito à paz por parte do PCP que é claramente ignorado e deturpado pelos detractores porque ousou criticar a NATO e a UE. Se bem que também não ajuda determinados indivíduos do PCP, talvez pela Rússia pós-soviética ter mantido muita iconografia da época ao contrário de muitos países do antigo bloco de leste (reforçando por sua vez a ideia errónea da URSS como fenómeno exclusivamente russo), de terem um posicionamento de certeza absoluta.

O que virá depois disto tudo?

Muito provavelmente a Rússia será vista como a origem de todos os males, excluída da maior parte da economia e política global, com a população na miséria como na "terapia de choque" dos anos 90 e forças armadas mobilizadas pelo país fora. 

Ou seja, haverá precisamente, a nível interno, as condições que levaram à ascensão de Putin, assentes no poderio militar como no período entreguerras e, por fim, a nível internacional a estigmatização das comunidades emigrantes russas e bielorrussas, perda da força diplomática russa no mundo e o reforço da China a nível regional e global.

A Ucrânia, também em crise, estará dependente da ajuda humanitária durante décadas, já que os russos serão incapazes de pagar indemnizações pós-guerra, terá uma reconstrução lenta e a mais que provável expulsão da minoria russa da Ucrânia para apaziguar as forças paramilitares neonazis. 

No mundo ocidental comemorar-se-á vitória como com o fim do bloco comunista em 1991, com milhões na miséria graças ao punitivismo, e forças de extrema-direita treinadas na Ucrânia (como os mujahideen afegãos nos anos 80) a fazer atentados a torto e a direito. Tudo isto enquanto hipocritamente apoiam genocídios na Turquia, Palestina, Azerbaijão, Sahara Ocidental, Papua Ocidental, Iémen ou Brasil.


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